domingo, 1 de março de 2015

A Bisa



A criançada lá de casa queria saber quem era aquele fóssil na varanda. Mas o fóssil olhava de cara amarrada e fumava aqueles fumos de palha, que também de cara amarrada passava horas seguidas a fazer somente um, cortando com as mãos firmes e fortes a palha do milho, quase um quadrado, e próximo a uma das bordas colocava em linha reta o fumo, e depois enrolava, enrolava apertado, o que me fazia lembrar os rocamboles da confeitaria, ainda há pouco todos os dias frequentada: o confeiteiro, de cara amarrada, enrolava o pão-de-ló com doce... mas voltava a centrar-me no fóssil, que abaixava a cabeça até um dos lados do quadrado depois de muito enrolar, e deixava a língua escorrer saliva por toda uma aba, para que eu nunca mais em minha vida, passado o ano que tivesse passado, se quer me atrevesse a pensar em comer rocambole.


O fóssil admirava a sua obra e me revirava o estômago – mas a curiosidade não me deixava partir, e via o fóssil pegar o fogo do forno à lenha ao seu lado e acender o fumo, sendo então o fóssil, minha conclusão, fruto seco do calor do fumo e do calor do forno.Senhoras e senhores, esta é a única visão que tenho da minha bisavó centenária em vida. Em vida?


Nós, meninos e meninas, éramos obrigados a dizer bênção e beijar a mão do fóssil todos os dias pela manhã ao acordar e passar por ele ali sentado sempre na varanda, na cadeira de balanço, e abaixávamos a cabeça – in memoriam – ao entrar para o almoço, e novamente tínhamos que tocar-lhe a capa e as veias sobressaltadas antes de deitarmo-nos. Não sei ao certo se o fóssil dormia e se dormia, se o fazia ali sentado ou se ia deitar-se – nunca o vimos andar, nem para ir ao banheiro e como na cadeira e na varanda não havia cheiro de fezes, não sabíamos na verdade se realmente cagava e mijava. Talvez já fosse fóssil demais para danar-se com fisiologia tão mais que de vida, que de morte.

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